segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Para sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.



Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Último Ato

Começa com um foco de luz e, depois do sopro derradeiro, tudo se desfaz. O espetáculo toma um rumo inesperado, assim quis o Grande Dramaturgo. Agora os coadjuvantes passam a protAGONIZAR o horror, a trilha é mórbida e o cenário é monocromático. Os atores, pela primeira vez, não desejam o público, sentem nus e impotentes diante daqueles tantos olhares: uns indagadores, outros pesarosos, outros comovidos, outros marejados, outros indiferentes e tantos outros indecifráveis. O palco deixa de ser mágico, sem rotundas e sem bambolinas. O ritual ganha ares fúnebres e o figurino torna-se obsoleto. Ah, o figurino! Como é difícil escolher... nesse último ato, ele não tem mais propósito, ele não vai conseguir dar vida ao personagem. Tudo acontece ao contrário, mesmo.

Agora, os atores são os condutores da dor, e essa dor vai dilatando, dilatando, dilatando... Começa interna, como deve ser, aí vai ganhando proporções e se alastrando. Começa a irradiar, vai conquistando espaço, ampliando o círculo e contagiando o outro, depois outro, e outro, e outro.

A cortina se fecha, mas essa é de concreto e cimento, não permite um “mais um”, não existem os aplausos de pé. Na verdade, os aplausos eufóricos dão lugar ao silêncio. 1 minuto de silêncio... 10 minutos de silêncio... eterno silêncio.


PS: A ti, flores coloridas e luz violeta. Eternamente. 

Cárcere

Ela foi se levantando lentamente. Despertara após noites e mais noites imersa num sono profundo e opressivo. Lá, aquele ser sinistro e sombrio, meio corvo, meio salamandra, meio nuvem, meio fumaça, de olhos negros reluzentes e atentos, com o sorriso cínico, constante, impositivo e severo a apavorava. Ele sinalizava-lhe desgraças infindas. Ela, travava diante dele. Tudo lhe era assustador, mas assim como a noite é mais escura próximo ao amanhecer, foi-lhe necessário esse mergulho na obscuridade do seu ser para que a luminosidade, pudesse, enfim, lhe alcançar.

Ela observava cada gesto involuntário e cada movimento atentamente, não poderia perder nenhum momento, nenhuma articulação. Nenhuma vértebra poderia mover-se sem que ela examinasse atentamente e fosse-lhe revelados os prazeres e desconfortos desse percurso. Era a maior descoberta de sua existência, tudo era novo, gostoso, harmonioso. Ouvia sonetos, sinfonias e bachianas... deixava-se conduzir por elas. Sentia-se imensamente feliz por ter, enfim, recobrado a consciência e agora seria possível reaver o controle do seu corpo, antes encarcerado pelos moldes e pelos padrões.

Num ímpeto de esplendor nunca visto antes, ela materializou-se numa nova mulher. Despertara. Em nada lembrava aquela menina, cujo corpo receoso, discreto, tímido e des-assumido, não lhe permitia a graciosidade e a delicadeza nos bailes de todos os dias. Em nada lembrava aquela moça tolhida, re-caída e enrijecida que escolheu se confinar para justificar seus delineamentos e contornos diferentes das outras pessoas.

Agora, com consciência, ela observava sua amplitude, suas formas e suas texturas. Uma observadora de si própria que não pretendia conceituar nada, que não tinha intenção de ser nada (e nem de deixar de ser o que a natureza lhe propusera), apenas olhava-se atentamente, reconhecia-se, aceitava-se. Agora, longe daquela antiga penumbra inquebrável, aterrorizante e sem fluidez, ela podia ser a mulher que quisesse: bailarina, borboleta, passarinho, cata-vento, girassol, sol, lua, rio, mar... infinita.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Fundo do mar

(...) [sua vida é] um escrito amador, piegas e ridículo que eu amasso e jogo fora com medo de que, na minha posteridade, alguém descubra que um dia eu escrevi aquilo.  [palavras dele].

A pequenina ostra resolveu se fechar, proteger sua frágil e intocável pérola na imensidão e profundidade daquelas águas quentes que contrastam com as geleiras que ela encontrou na superfície [palavras minhas].