terça-feira, 20 de setembro de 2011

Cárcere

Ela foi se levantando lentamente. Despertara após noites e mais noites imersa num sono profundo e opressivo. Lá, aquele ser sinistro e sombrio, meio corvo, meio salamandra, meio nuvem, meio fumaça, de olhos negros reluzentes e atentos, com o sorriso cínico, constante, impositivo e severo a apavorava. Ele sinalizava-lhe desgraças infindas. Ela, travava diante dele. Tudo lhe era assustador, mas assim como a noite é mais escura próximo ao amanhecer, foi-lhe necessário esse mergulho na obscuridade do seu ser para que a luminosidade, pudesse, enfim, lhe alcançar.

Ela observava cada gesto involuntário e cada movimento atentamente, não poderia perder nenhum momento, nenhuma articulação. Nenhuma vértebra poderia mover-se sem que ela examinasse atentamente e fosse-lhe revelados os prazeres e desconfortos desse percurso. Era a maior descoberta de sua existência, tudo era novo, gostoso, harmonioso. Ouvia sonetos, sinfonias e bachianas... deixava-se conduzir por elas. Sentia-se imensamente feliz por ter, enfim, recobrado a consciência e agora seria possível reaver o controle do seu corpo, antes encarcerado pelos moldes e pelos padrões.

Num ímpeto de esplendor nunca visto antes, ela materializou-se numa nova mulher. Despertara. Em nada lembrava aquela menina, cujo corpo receoso, discreto, tímido e des-assumido, não lhe permitia a graciosidade e a delicadeza nos bailes de todos os dias. Em nada lembrava aquela moça tolhida, re-caída e enrijecida que escolheu se confinar para justificar seus delineamentos e contornos diferentes das outras pessoas.

Agora, com consciência, ela observava sua amplitude, suas formas e suas texturas. Uma observadora de si própria que não pretendia conceituar nada, que não tinha intenção de ser nada (e nem de deixar de ser o que a natureza lhe propusera), apenas olhava-se atentamente, reconhecia-se, aceitava-se. Agora, longe daquela antiga penumbra inquebrável, aterrorizante e sem fluidez, ela podia ser a mulher que quisesse: bailarina, borboleta, passarinho, cata-vento, girassol, sol, lua, rio, mar... infinita.

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