quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Velho Chico

Era um garoto/que como eu/ amava os Beatles/ e os Rolling Stones.
Girava o mundo /sempre a cantar/ as coisas lindas da América...

Essa música tem um significado muito especial pra mim. Enquanto, talvez, a maioria das pessoas tenha como lembranças de suas infâncias as cantigas de roda, comigo é diferente. Já dizia meu visionário pai: “você é toda ao contrário!" Pois é dele mesmo que me lembro ao ouvir essa música: nós cantávamos, fazíamos solos de guitarra, atirávamos uns nos outros, morríamos e, por fim, ressuscitávamos às gargalhadas. São as melhores imagens que tenho da infância.

Sinto uma saudade imensa do meu pai. Desde ontem fui acometida por um sentimento nostálgico em relação a ele, que me chamava de “minha picurrucha”. Lembrei dessa música, lembrei de outras tantas que tocavam na época em que convivi com ele, lembrei daquela ruazinha em que morávamos, do jardim cheio de hibiscos que era só nosso e do pé de amêndoas que eu e minha irmã adorávamos nos pendurar. Veio à memória, também, o amor que ele tinha às coisas terra e ao plantio de frutas e hortaliças no quintal de casa que nos fazia mais saudáveis do que somos hoje.

Ele não tinha muita paciência “Eli, Eli, lamá sabactâni” e era, também, bastante dramático. Igualzinho a mim! Disseram-me, certa vez, que tenho “o charme masoquista dos poetas”. Essa é a maior herança que tenho de meu pai. Ele era uma tarde chuvosa de sábado, elegante na sua dor, que, corajosamente, confinou-se em sua completude. Meu pai era poeta, meu pai era lágrima. Ele escolheu se enclausurar para ter a liberdade de uivar sua dor, solitariamente, a cada lua cheia. Só ela o entenderia.

Meu pai tinha olhos tristes e melancólicos, e os meus se reconheciam nos dele. Talvez ele tenha sido o meu parceiro nessa vida e vice-versa, mas o tempo não foi generoso conosco e, há quase cinco anos, ele está a léguas e léguas de distância de mim. Isso me entristece. Essa foto é a única imagem que tenho dele, alguns dias antes de partir para o infinito. Tê-la me alegra.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Mas hoje é dia de vibrar assim...

Na mãe que, no simples acordar, já te acalma. Na sobrinha que se joga nos teus braços. No abraço do anjo. Na colega de trabalho que irradia alegria. Na amiga que você escuta e confia. Naquela outra amiga, que é muito íntima. Hoje é para pensar no amor que te faz verdade. Na irmã que te procura sempre. Na prima que te orgulha. Nas outras que você acordou morrendo de saudade. Nas tias que te mimam. Nos perdões que pediu, nos perdões que recebeu, nos pessoas que você precisa perdoar, no se perdoar. No amigo que você ama, mas só se falam por telefone. Na amiga que mora na mesma cidade que você, mas passa a semana em outra cidade, coincidentemente a mesma que você também passa, mas que nunca se vêem e, mesmo assim, estão sempre unidas. Naquela amiga-irmã que mora em outro estado e que, há 10 anos, te queria como madrinha do casamento, mas você não pôde ir por falta de grana.
Em tudo que você tem a aprender no curso de teatro, nas construções dramatúrgicas que agora lhe inspiram, na sociedade com a amiga, no cartão de visitas dessa sociedade, na oficina de teatro que vocês vão fazer no sábado.
É dia de suspirar pelo futuro promissor, nas descobertas diárias, nas relações firmadas. Na solidariedade, na paz, na supremacia do amor... Hoje é dia de sonhar com os novos caminhos, de se abrir para os milagres da vida, de acreditar na regeneração humana, de se permitir viver em plenitude, de se revelar ao mundo, de mentalizar flores de lótus violetas, de clamar por transformação. Hoje é dia de se inspirar no bem, se conectar no bem, estar bem, fazer o bem... ser o próprio bem.

É mais ou menos assim

A que já foi primeira da classe e hoje não sabe ler. A mãe solteira, desempregada, que tem sua casa assaltada. O professor que privilegia os seus preferidos. A chefa que só tem duas funcionárias que prestam. Os dois ladrões que assustam com uma faca quatro crianças a caminho do parque. Os policiais que espancam outras duas crianças. As duas moças que sonham se tornar artistas, mas trabalham numa repartição pública decadente. A mãe que deixa a filha para poder cuidar da família. O jovem artista talentoso, órfão e desempregado. A menina que, todas as noites, tem pesadelos com a morte da mãe. A outra menina que finge ser a mãe morta. O viúvo que daria a vida para estar ao lado da amada. O amor do passado que diz: "bendita seja tu" e, no dia seguinte, lamenta. A grande amiga fútil e alienada. O amigo gay, que é mentiroso. Os que só enxergam a superfície. A mulher que não consegue cuidar do seu homem, que está sofrendo. Os que puxam saco quando algo admirável é feito. A que já foi cobiçada e, hoje, é invisível. Aquele outro professor, o lindo, que agora luta para se manter vivo. A que está com medo de meditar. E então?

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Como se fosse ontem

Finalmente estavam ali, um diante do outro. Ele, com olhos desejosos e imprudentes. Ela, com a tez enrubescida, ingenuamente sentia-se mulher. Estavam fascinados como quem contempla o despontar da aurora e ali, naquele espaço, todas as coisas faziam sentido.  O suor das mãos denunciava suas verdades mais íntimas e, naquele momento, eram perenes.

Sentaram-se. A janela entreaberta evidenciava o alaranjado do céu naquela tarde de início de outono, a estação que faz todos os amores possíveis. A atmosfera parecia congelada, um belo quadro feito artesanal e exclusivamente para eles, com uma grande árvore em alto relevo. A celeridade dele era refreada pelo receio dela, que tinha consciência de que se tratava de uma grande loucura, talvez a maior de sua vida, mas ali ela ensaiava timidamente os primeiros passos rumo à liberdade e qualquer desatenção a isso poderia custar-lhe uma vida rasa e insípida. Entregou-se.

Ele, de olhos fechados, acariciava sua pele e extasiava-se com a beleza e o encantamento que se expandia diante daquele ato. Era a primeira vez que suas mãos tocavam pétalas amarelas tão delicadas e viçosas. Ele fez daquele corpo um sol vibrante. Ela, com um ardor despudorado, convertia-o em rei. Impregnados de emoção e êxtase, fizeram de conta que seus destinos estavam amarrados por todo o sempre.